Ouvir a pesquisadora Marília de Nardin Budó falar é, quase que instantaneamente, sentir-se tocada por seus objetos de estudo, tão marginais, quanto essenciais para as ciências humanas. Transitando entre detentos, vítimas das grandes corporações ou simplesmente vítimas de um sistema judiciário que escolhe quem punir, Marília construiu uma trajetória intelectual que é fruto de um olhar sensível e acurado para os desvios do mundo e para grandes problemas estruturais da sociedade. Ela foi uma das vencedoras do Prêmio Mulheres na Ciência 2021, promovido pela Pró-Reitoria de Pesquisa (Propesq), na categoria júnior, na área de Ciências Humanas.
Há apenas dois anos no quadro de professoras da UFSC, a atuação dela chamou a atenção de estudantes e de colegas que acompanharam seu pioneirismo em áreas consideradas marginalizadas nos estudos de Direito. A indicação ocorreu a partir de uma colega e de estudantes e foi referendada em carta de recomendação, entre elas a de sua orientadora no mestrado, a professora aposentada da UFSC Vera Regina Pereira de Andrade, uma das suas referências para entrar no campo da criminologia.
“Me sinto, sim, uma jovem cientista”, brinca Marília, como alusão à categoria na qual foi considerada destaque. “Mas tem um percurso aí. E o prêmio vem como uma transição para um momento que estou vivendo, agora com o credenciamento no programa de pós-graduação da UFSC”, comenta.
Mas o olhar para as questões de gênero não foi forjado por títulos e conquistas. A pesquisadora, que se destaca pela produtividade e também pelos estudos com colegas argentinas, norte-americanos, espanhóis e italianos, é crítica ao modo como as relações de gênero se constroem nas universidades. “Não há como comparar homem e mulher nesse espaço. Como estudante você sente a diferença de tratamento, o olhar como objeto. Na docência, é perceptível a diferença de carga horária em sala de aula e nos cargos administrativos em que é preciso ‘carregar o piano’”, afirma.
As vivências pessoais como mulher, jovem, num lugar que reproduz desigualdades por estar inserido num sistema, somam-se às reflexões de uma pesquisadora que tem na crítica aos sistemas de poder um dos nortes da sua atuação. Por isso, a perspectiva que assumiu faz com que ela reconheça que outras mulheres prepararam um território para ela atuar. “Outras vieram antes de mim. É preciso fazer com que o cenário mude para minhas alunas e orientandas, como no passado também já fizeram”.
Entre o Direito e o Jornalismo
Os insights para as principais pesquisas de Marília não negam sua dupla formação. Um livro da professora Vera Andrade, que viria a ser sua orientadora de mestrado, na UFSC, e um texto da jornalista Eliane Brum, uma das mais premiadas do Brasil, revelam como a articulação entre mídia e direito a transformaram numa pesquisadora que transita entre os dois campos, lançando um olhar crítico para ambos.
Do livro de Vera, Ilusão de Segurança Jurídica, veio o fim da própria ilusão que ela carregava sobre o processo penal, a crença nas normas e nas promessas do Estado de Direito. “A criminologia foi desestruturante pois, a partir dela, comecei a perceber que há uma seletividade, que carrega estruturas de raça, gênero, classe e que opera nesse sistema”, resume.
Já o texto de Eliane Brum a inspirou a desbravar um outro campo pouco conhecido nos estudos do Direito: o da criminologia verde, no qual investiga como o sistema penal também produz distorções na esfera ambiental. Nessa investigação, aliás, a pesquisadora também se sente com o ímpeto de uma jornalista: para problematizar aspectos legais sobre como a indústria de amianto afeta a saúde dos cidadãos do seu entorno, compartilha técnica das duas áreas, mais uma prova de que a dupla formação – em Direito e em Jornalismo – lhe garantiu um olhar singular para a realidade.
“Fiz as duas faculdades (Direito e Jornalismo) ao mesmo tempo. Então, todo esse processo de me inserir num campo também foi concomitante. No início, eu priorizei o Direito por conta dos pré-requisitos das disciplinas. Mas foi no jornalismo que comecei a fazer pesquisa, trabalhando com a análise de jornais”, lembra. Ali começava a trajetória no estudo das relações entre mídia e crime. “Me causava incômodo a forma como os jornais retratavam questões como presunção de inocência, como a mídia influenciava as decisões judiciais e outras grandes questões. Foi aí que começou minha trajetória na pesquisa”, lembra.
Olhar crítico para um sistema que não pune os poderosos
A partir daí, as pesquisas de Marília passaram a ser fruto de um tripé: as escolhas dos lugares onde fez sua formação (o mestrado foi na UFSC e o doutorado na Universidade Federal do Paraná, com período na Università di Bologna), sua jornada como professora (na Universidade Federal de Santa Maria, Faculdade Meridional, Unicuritiba, Ulbra e Unifra, entre outras) e as parcerias que se construíram ao longo do tempo.
Uma dessas parcerias, com o professor Gregg Barak, da Eastern Michigan University, lançou-a em um campo até então desconhecido, mas que hoje é uma das suas áreas de pesquisa: os crimes dos poderosos. Dessa parceria, surgiu um convite para lecionar nos Estados Unidos, como convidada, e uma nova possibilidade teórica: unir o que vinha estudando sobre as grandes corporações ao direito ambiental, que sempre a fascinou.
“Eu havia começado a lecionar uma cadeira em um mestrado que tinha como área de concentração ‘Direito, Democracia e Sustentabilidade’ e me deparei com um mundo novo, que me apaixonou”, lembra. Tocada pela história da indústria do amianto e descobrindo novas informações sobre a legislação e o uso da fibra, ela articulou os estudos e fez com que dialogassem.
A pesquisadora explica que seu olhar para as questões que envolviam direito e sustentabilidade também vinha de uma matriz crítica, a partir da percepção sobre um sistema penal que atua de forma seletiva também na esfera ambiental. Nesse sentido, os mecanismos de punição não atuariam entre os grandes poluidores, mas entre agentes mais frágeis, como pescadores artesanais, por exemplo. “As ferramentas do Direito não me pareciam coerentes, pois há uma insustentabilidade do sistema penal nas causas que envolvem a sustentabilidade”.
A construção da identidade como pesquisadora, muito tributária também das parcerias que construiu no exterior, deu lugar a uma investigadora com adesão ao trabalho empírico. Segundo Marília, essa tradição é menos comum no Brasil, mas é onde ela decidiu se firmar – também por conta da experiência com pesquisa em comunicação, quando ainda era estudante de iniciação científica.
Assim, sua proposta de pesquisa no pós-doutorado envolvia o estudo de discursos nas revistas médicas para compreender as relações das grandes corporações e do Estado no caso do amianto – fibra cancerígena utilizada na indústria. Uma das suas descobertas desse período é de que cientistas que trabalhavam para a indústria publicavam papers assegurando que o amianto não causava riscos à saúde humana sem declarar conflito de interesses. Isso gerava, no debate público, uma sensação de que havia uma controvérsia com relação aos efeitos cancerígenos do produto, por isso Marília decidiu estudar os discursos científicos.
Mas o contato com vítimas reais e com seus depoimentos fez com que o objeto mudasse – desistiu de estudar o discurso científico para estudar as pessoas durante um período de pós-doutorado em Barcelona. Como nunca havia atuado com entrevistas, foi um desafio e uma corrida contra o tempo, baseada no ingresso em um novo campo da carreira, que envolvia, também, contato com os comitês de ética em pesquisa.
Com a parceria de Lorenzo Natali, desenvolveu uma metodologia inovadora, denominada solilóquios itinerantes, que consiste em fazer com que o entrevistado vítima do amianto, escolha um caminho pela cidade onde foi contaminado e desenvolva suas falas a partir dos lugares por onde passa. O material é gravado e registrado em vídeo. “O mais interessante é que os resultados da entrevista tradicional são completamente diferentes dos obtidos com os solilóquios. A entrevista tradicional apresenta um resultado mais formal”, comenta.
Entre a criminologia crítica, a criminologia verde e a criminologia corporativa, Marília tem sido pioneira, no campo do Direito, em áreas que são tradicionais nas ciências sociais, fora do país, mas ainda marginais no Brasil. Os méritos são colhidos com frequência: além do prêmio recebido com apenas dois anos de atuação na UFSC, foi recentemente uma das selecionadas, em toda a América Latina, para uma bolsa de estudos no Instituto de Criminologia da Universidade de Leuven, principal reduto da pesquisa em justiça restaurativa.
A determinação para lecionar, pesquisar e construir parcerias mundo afora preparam, para Marília, um espaço de ação que a coloca também como liderança em áreas tradicionalmente menos prestigiadas da vida acadêmica, como a extensão e a divulgação científica. Os projetos Infovírus: prisões e pandemia e Memória, luto e luta em tempos de pandemia: estratégias culturais para afirmação da vida diante da gestão da morte nas prisões, realizados em decorrência da pandemia, lançam um olhar para as prisões brasileiras, os detentos e as memórias daqueles que morreram. Uma forma de investigar, pesquisar, mas sobretudo de agir no mundo.
Prêmio Mulheres na Ciência
O Prêmio Mulheres na Ciência foi criado pela Propesq com o propósito de estimular, valorizar e dar visibilidade às pesquisadoras da UFSC. Também visa inspirar a comunidade científica interna e externa nas diferentes áreas do conhecimento e contribuir para diminuir a assimetria de gênero na ciência. Confira a lista com todas as premiadas.
Amanda Miranda/Jornalista da Agecom/UFSC
Fonte: Notícias UFSC