Prêmio Mulheres na Ciência: Cristina Scheibe Wolff

24/11/2021 10:05

Em 2022, a historiadora Cristina Scheibe Wolff completa 30 anos como professora do Departamento de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (CFH/UFSC). Com uma trajetória acadêmica marcada por significativas contribuições ao debate sobre questões de gênero no campo da História, Cristina é uma das homenageadas pelo Prêmio Mulheres na Ciência 2021, promovido pela Pró-Reitoria de Pesquisa (Propesq/UFSC). Ela foi a vencedora na área de Ciências Humanas da categoria Sênior, voltada a pesquisadoras que ingressaram na UFSC até o ano 2000.

Para quem sempre buscou ressaltar a relevância de dirigirmos um olhar para a História a partir de uma perspectiva feminista, essa conquista revela-se ainda mais especial: “Eu me senti muito honrada e feliz, fiquei muito emocionada por ter sido uma das escolhidas. Esse prêmio mostra as mulheres como protagonistas da ciência, chama a atenção de todos que fazem parte da UFSC, professoras e professores, estudantes e servidores técnicos, além da própria sociedade, para a importância da atuação das mulheres como pesquisadoras”, avalia Cristina. Para ela, ao destacar a carreira das mulheres cientistas e sua presença no campo acadêmico, o prêmio é um incentivo para as jovens cientistas: “É um estímulo para que continuem pesquisando, apesar da situação tão difícil que o campo científico está vivendo no Brasil. Ao perceberem que outras mulheres fizeram suas carreiras como cientistas e seguem contribuindo para a produção científica no Brasil, elas são incentivadas a trilhar o mesmo caminho, a pensar que a carreira acadêmica é uma possibilidade.”

Dar visibilidade à presença das mulheres não apenas no campo acadêmico, mas nos mais diversos espaços de atuação, vivência e transformação da sociedade é uma característica intrínseca ao trabalho que Cristina vem desenvolvendo na UFSC desde seu ingresso como docente, em 1992. “Ao longo da história, as mulheres sempre foram invisibilizadas. A grande questão não é que não existiam mulheres fazendo ciência. Geralmente, as estruturas sociais contribuíram para que as mulheres fossem invisibilizadas e esquecidas, nos mais diversos campos intelectuais. Quando pensamos em grandes escritores de tempos passados, por exemplo, já falamos automaticamente em escritores, no masculino. Pensamos logo nos homens, dificilmente nos lembramos das mulheres que também foram grandes escritoras.”

Apesar de observar uma presença cada vez maior das mulheres na universidade, Cristina avalia que ainda há muito por conquistar: “São muitos os espaços que ainda não foram ocupados por mulheres. Mesmo nas humanidades, que é uma área onde as mulheres sempre estiveram mais presentes, ainda são os homens que ocupam os cargos mais altos na carreira científica. A porcentagem de homens em relação às mulheres vai subindo à medida em que se progride na carreira. Ainda é mais fácil para os homens ocuparem as posições mais prestigiadas na carreira científica.”

 

Cristina no dia da sua formatura em História, em 1988. Foto: Acervo pessoal.

Trajetória

Cristina Scheibe Wolff tem uma relação não apenas profissional, mas também familiar e afetiva com a UFSC. Ela já frequentava o campus muito antes de imaginar que um dia se tornaria professora da universidade: “Eu praticamente nasci dentro da UFSC, porque meus pais eram professores. Aos 10 anos de idade eu comecei a estudar no Colégio de Aplicação.” Seu pai, Luiz Fernando Scheibe, aposentou-se como professor titular emérito do Departamento de Geociências (GCN/UFSC) em 2012, mas segue atuando como voluntário junto a grupos de pesquisa e programas de pós-graduação. Sua mãe, Leda Scheibe, também aposentada, foi professora do Departamento de Metodologia de Ensino (MEN/UFSC) até 1997 e ainda exerce a função de editora da revista acadêmica Retratos da Escola.

“Estudei por dois anos no Colégio de Aplicação. Depois, meus pais se mudaram para São Paulo para fazer pós-graduação. Quando voltamos para Florianópolis, fiz o final do Ensino Médio no Aplicação e então prestei vestibular para o curso de História”, relembra Cristina, que se formou em História na UFSC em 1988. Assim que ingressou na graduação, ela passou a aproveitar as diversas oportunidades que a vida universitária proporcionava, indo muito além do espaço da sala de aula. “Participei de um projeto de extensão que se chamava ‘Universidade na roça’, que foi muito importante para a minha carreira. O projeto era coordenado pelo professor José Ari Celso Martendal, do departamento de Filosofia, e tinha um caráter interdisciplinar. Foi um grande aprendizado sobre como fazer um projeto de pesquisa, como desenvolver uma metodologia científica.”

Capa do livro “Associação Bocaina: uma conquista dos agricultores”.

Pelo projeto, Cristina atuou em uma comunidade de Bocaina do Sul, localizada no interior de Santa Catarina, próxima a Lages. Sua proposta era escrever a história da Associação de Pequenos e Médios Agricultores usando como recursos a história oral e documentos que encontrasse por lá: “Os fundamentos do projeto eram as perspectivas de Paulo Freire, enfocando uma pedagogia crítica e respeitosa dos saberes populares, e de Antônio Gramsci que destacava a importância da formação de intelectuais comprometidos com os interesses do povo, o papel destes intelectuais na construção de uma nova sociedade.” Os resultados dessa pesquisa foram editados em um pequeno livro, que ela ainda guarda com carinho, por ter sido sua primeira publicação acadêmica.

Cristina também foi estagiária de pesquisa da professora Joana Maria Pedro, que em breve seria sua colega de departamento. “A tese de doutorado dela era sobre a história das mulheres em Santa Catarina e minha atividade como bolsista era pesquisar os jornais de Blumenau. Foi dessa pesquisa que saiu o meu projeto de mestrado.” Em 1989, ela retornou a São Paulo, dessa vez para fazer mestrado em História na PUC – São Paulo. Defendeu sua dissertação em 1991, com o título “As mulheres da Colônia Blumenau – Cotidiano e trabalho. 1850-1900.

Assim que concluiu o mestrado, Cristina foi aprovada em concurso para docente do departamento de História da UFSC, cuja vaga era destinada à disciplina de História Antiga e Medieval. Como essa não era sua especialidade, ela precisou se esforçar bastante para preparar as aulas, conforme relembra: “Tive que aprender, estudar muito. Naquela época, eu escrevia em cadernos tudo que ia dizer na aula e fazia transparências de todo o conteúdo.” Por ainda não ter experiência dando aulas, ela usava a criatividade: “Às vezes eu levava música, fazíamos dramatizações da Ilíada. Eu ensinava a partir das grandes tragédias e comédias. Algumas ex-alunas, que agora são minhas colegas, se lembram dessas minhas primeiras aulas até hoje.” Logo Cristina começou a lecionar também a disciplina de História de Santa Catarina, área que lhe era bem mais familiar.

Cristina em canoa no rio Tejo, na Reserva Extrativista do Alto Juruá, em 1995. Foto: Ruy Ávila Wolff.

Em 1994, retornou a São Paulo para iniciar seu doutorado na USP, com orientação da professora Maria Odila Leite da Silva Dias, reconhecida como uma das pioneiras no estudo da história das mulheres no Brasil. Seu livro “Cotidiano e Poder em São Paulo no século XIX” (Brasiliense, 1984) é considerado um clássico da área. Durante o primeiro ano do doutorado, Cristina cursou uma disciplina com outra professora que admirava muito, Manuela Carneiro da Cunha. “O nome da disciplina era Sociedade e Meio Ambiente e seu intuito era formar um grupo de pesquisa sobre a Amazônia. Ela estava montando uma equipe para pesquisar na Reserva Extrativista do Alto Juruá, no Acre. O objetivo do projeto era responder até que ponto o extrativismo nessa região seria uma prática sustentável.”

Seu marido, Ruy Avila Wolff, que era agrônomo e tinha mestrado em Geografia, foi contratado pelo projeto. Cristina ficou tão animada com a possibilidade de acompanhá-lo na expedição, que decidiu mudar seu projeto de tese para que também pudesse trabalhar na reserva extrativista. “Migrei para uma área que era completamente desconhecida para mim, mas mantive o foco na questão de gênero. Decidi pesquisar sobre a história das mulheres na Amazônia.”

Cristina em frente ao Fórum Municipal de Cruzeiro do Sul. Foto: Acervo pessoal.

O casal viveu dentro da floresta durante o ano de 1995. Nesse período, Cristina realizou sua pesquisa de campo: “Trabalhei com o período histórico de 1890 a 1945. Fiz 29 entrevistas com pessoas mais velhas que moravam na reserva e também em Cruzeiro do Sul, que era a cidade mais próxima. Também pesquisei processos judiciais no Fórum de Cruzeiro do Sul e montei um banco de dados com três mil processos, além de jornais e outros documentos, como relatos de viajantes, literatura. Reuni tudo que achei sobre a história das mulheres desse lugar e desse período histórico.”

Sua tese de doutorado deu origem ao livro “Mulheres da Floresta – Uma história Alto Juruá, Acre (1890-1945) (Hucitec, 1999)”, que está esgotado, mas em breve será lançada a segunda edição. De tudo que já produziu, esse é o trabalho do qual Cristina mais se orgulha: “Acho que esse livro, resultado da minha tese, é um dos mais completos sobre esse lugar.”

Capa do livro “Mulheres da Floresta”.

No prefácio da segunda edição, Barbara Weinstein, professora emérita da Universidade de Nova York (NYU) e especialista em História do Brasil, escreveu: “Quero registrar minha profunda admiração por tudo que Cristina Scheibe Wolff conseguiu fazer neste livro, começando com o seu processo exemplar de pesquisa num local onde poucos historiadores iam imaginar que ainda existiria documentação, seja oral, seja escrita. Com Mulheres da Floresta, Cristina nos oferece uma história íntima do mundo que a borracha criou e demonstra que o gênero é realmente uma categoria capaz de renovar de cima a baixo nosso modo de interpretar o passado.”

Retorno à UFSC, maternidade e pós-doutorado

Assim que concluiu o doutorado e retornou à UFSC, Cristina iniciou um novo projeto de pesquisa, intitulado “Índias pegas a laço”, voltado à história das mulheres indígenas em Santa Catarina. Ainda imersa nas reflexões suscitadas a partir de sua experiência na floresta, ela logo percebeu que as comunidades nativas do estado onde vivia tampouco recebiam a devida atenção da academia: “A proposta era registrar a trajetória de mulheres indígenas incorporadas à sociedade ‘branca’ de Santa Catarina, por casamento, adoção ou mesmo captura. Eu pretendia dar visibilidade a um aspecto da construção étnica histórica da sociedade catarinense que ainda havia sido muito pouco explorado.”

Com os filhos Pedro e Luiza, em Paris. Foto: Acervo Pessoal.

Essa pesquisa foi desenvolvida entre 2000 e 2003. Em seguida, ela viveu o que considera ter sido “uma grande mudança de perspectiva de pesquisa” em sua carreira acadêmica: a oportunidade de fazer seu primeiro estágio de pós-doutorado, na Universidade de Rennes II, na França. A essa altura, além de professora e pesquisadora, Cristina também já era mãe. Seu primeiro filho, Pedro, nascera em dezembro de 1996, enquanto cursava o doutorado. Em 2000, nasceu sua segunda filha, Luiza. Ambos, além de seu marido Ruy, acompanharam-na em sua viagem à França, onde estiveram de julho de 2003 a julho de 2004.

No pós-doutorado, Cristina teve a supervisão do professor Luc Capdevila, especialista em questões relacionadas a gênero e conflitos armados, cujos estudos sobre a Guerra do Paraguai são reconhecidos internacionalmente. Ela passou então a pesquisar sobre as relações de gênero nos movimentos de resistência às ditaduras nos países do Cone Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai). Assim que retornou ao Brasil, juntou-se a um projeto de pesquisa mais amplo – “Gênero, feminismos e ditaduras do Cone Sul” –, que tinha a participação de outras professoras do departamento de História, integrantes do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/UFSC).

Inicialmente, Cristina esteve focada exclusivamente no contexto brasileiro. Mas logo sentiu a necessidade de realizar um estudo comparativo com outros países do continente que igualmente viveram períodos ditatoriais. Aos poucos, ela ampliou seu olhar para além da luta armada: “Passei a estudar também outras formas de resistência, especialmente grupos que lutavam por direitos humanos de desaparecidos políticos.”

Com o marido, Ruy, e os filhos Pedro e Luiza, nos Estados Unidos. Foto: Acervo pessoal.

Os resultados dessas pesquisas foram publicados nos livros “Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul” (2010) e “Resistências, gênero e feminismos contra as ditaduras no Cone Sul” (2011), ambos organizados em conjunto com a professora Joana Maria Pedro, sendo que o último também teve a participação da então doutoranda Ana Maria Veiga, que atualmente é docente da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). As obras estão disponíveis on-line, no acervo da biblioteca da UFSC.

Em 2010, Cristina partiu novamente com toda a família, dessa vez para os Estados Unidos, onde fez seu segundo pós-doutorado. Com o projeto “O gênero da resistência na luta contra as ditaduras militares no Cone Sul (1964-1989)”, ela realizou seu estágio no Latin American Studies Center da Universidade de Maryland entre setembro de 2010 e agosto de 2011. Nesse período, pesquisou os documentos das embaixadas norte-americanas que estavam disponíveis no acervo do National Archives e da Library of Congress, ambos localizados muito próximos ao campus universitário.

Capa da revista Santa Catarina em História.

Revistas Acadêmicas e organização de eventos

Além do ensino e da pesquisa, Cristina sempre esteve envolvida com atividades editoriais e organização de congressos e seminários acadêmicos. Sua primeira experiência como editora de publicação científica foi na disciplina História de Santa Catarina. Desde 2007, os melhores trabalhos produzidos pelos alunos da disciplina são publicados na revista Santa Catarina em História, que foi criada especialmente com esse propósito: “A ideia era publicar os melhores artigos originais, produzidos pelos estudantes, para que este conhecimento não se perdesse em um campo de estudos que tem tão pouca atividade editorial.” A partir de 2011, a revista deixou de ser restrita aos trabalhos da disciplina, passou a receber colaborações de outros pesquisadores e obteve o Qualis B5.

Cristina também vem atuando como editora da Revista Estudos Feministas (REF), publicação acadêmica vinculada à UFSC desde 1999, que se consolidou como principal referência científica sobre estudos de gênero da América Latina. Ela atuou inicialmente como editora de resenhas e depois como editora de artigos. A partir de 2008, passou a ser uma das coordenadoras editoriais da revista, função que ocupa até o momento, tendo se ausentado somente por um ano ao longo desse período. Além de editar artigos, ela também contribui na divulgação e indexação da revista, e elabora projetos para agências de fomento.

Capa da Revista de Estudos Feministas (REF).

Entre os eventos que já organizou, certamente o mais importante deles é o  Seminário Internacional Fazendo Gênero, que ocorre na UFSC desde 1994. Cristina foi uma das coordenadoras gerais do Fazendo Gênero 7, realizado em 2006, e do Fazendo Gênero 11, em 2017. Este último ocorreu em conjunto com o evento internacional 13º Mundos de Mulheres e recebeu um número recorde de inscritas: quase 10 mil pessoas, oriundas de 32 países.

Na mesa de abertura, Cristina discursou diante do auditório do Centro de Cultura e Eventos da UFSC completamente lotado, emocionando o público presente: “O número expressivo de inscrições reflete a importância que os estudos e as reivindicações de gênero assumiram na contemporaneidade. Nós estamos aqui, de punhos erguidos, de mãos dadas, com as nossas reivindicações, nosso saber, nossos gritos, nossos cantos, nossas poesias, nossas imagens, nossos corpos. Estamos aqui, no campus da UFSC, para discutir e pensar os desafios que temos pela frente nesse contexto em que direitos duramente conquistados estão sendo ameaçados e cortados, em que forças retrógradas, fundamentalistas e fascistas parecem ganhar terreno pelo mundo.”

Cristina na cerimônia de abertura do 11º Fazendo Gênero e 13º Mundos de Mulheres, em 2017.

Tanto a organização do Fazendo Gênero como a edição da REF são atividades vinculadas ao Instituto de Estudos de Gênero da UFSC, do qual Cristina também faz parte.

Presente e Futuro

Nos anos mais recentes, Cristina vem se dedicando a novos projetos, ampliando suas possibilidades de pesquisa. Um deles, iniciado em 2015, busca investigar a história das emoções no âmbito dos movimentos de resistência e dos feminismos na América Latina. Com o título “Políticas da emoção e do gênero na resistência às ditaduras do Cone Sul”, ela obteve financiamento do CNPq de editais destinados às Ciências Humanas e de caráter Universal, o que possibilitou reunir um grupo de pesquisadoras. A pesquisa se encerrou em 2021 e seus resultados serão publicados em um livro, previsto para ser lançado nos próximos meses. A equipe também produziu uma série de 11 vídeos, que estão disponíveis no canal do Laboratório de Gênero e História no Youtube.

Em 2016, Cristina passou a se dedicar também ao projeto “Mulheres de Luta: feminismo e esquerdas no Brasil (1964-1985)”, dessa vez financiado por edital específico da CAPES, que tinha como tema “Memórias Brasileiras: Conflitos Sociais”. A pesquisa, desenvolvida junto à equipe do LEGH, resultou na publicação de um livroe na produção de 20 vídeos, cuja playlist está disponível no canal do LEGH no Youtube.

Prestes a completar 30 anos de atividades acadêmicas, Cristina continua motivada com a carreira científica, e segue explorando novas áreas de investigação. Em 2021, ela foi uma das selecionadas no edital universal da FAPESC, com a proposta: “A internet como campo de disputas pela igualdade de gênero”: “Agora comecei a explorar um outro caminho, trabalhando com as questões das redes sociais. Eu me sinto muito empolgada com cada um desses projetos.”

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC

Fonte: Notícias UFSC

Tags: Mulheres na Ciência 2021