Entender, promover e disseminar estratégias e técnicas para o desenvolvimento de edifícios que sejam adequados ao clima no qual estão inseridos, que aproveitem a iluminação natural, com maior eficiência energética e menor impacto ambiental, que busquem a redução do desperdício de água tratada e que levem em conta as necessidades dos usuários. Esses são os principais objetivos do projeto Adequação climática e uso racional de água em edificações, coordenado pelo professor do Departamento de Engenharia Civil da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Enedir Ghisi e vencedor da categoria Pesquisa Aplicada do Prêmio Pesquisa de Destaque, organizado pela Pró-Reitoria de Pesquisa (Propesq/UFSC).
Em andamento desde 2007, o projeto envolve uma ampla gama de assuntos que impactam diretamente o consumo de energia e a qualidade de vida das pessoas, incluindo desempenho e conforto térmico, aproveitamento da água da chuva, análise do ciclo de vida das construções, sistemas de iluminação integrados com a iluminação natural e comportamento do usuário. Nesses 15 anos, foram publicados mais de 140 artigos em revistas científicas e orientados mais de 150 estudantes e pesquisadores, da graduação ao pós-doutorado.
“Já foram vários trabalhos sobre isso, e a gente já tem algumas conclusões dos trabalhos realizados. Já sabemos que as edificações, de fato, não podem ser construídas de qualquer jeito, que é o que vem sendo feito no Brasil o tempo inteiro, desde longa data. Projeta-se a edificação e ela é construída daquele jeito em qualquer clima. Isso é errado. Não tem como funcionar. Uma casa projetada para ser construída em Florianópolis deveria ser diferente de uma casa em Lages; ela deveria ser diferente de uma casa em Belém, no Norte do Brasil; ela deveria ser diferente de uma casa no litoral do Nordeste, por exemplo. Cada edificação deveria ter características diferentes para cada um desses climas e para qualquer outro clima que a gente tem. Então, quando vemos os programas governamentais por aí, financiando a construção do mesmo projeto em todo o Brasil, temos algo completamente inadequado”, salienta Enedir.
Uma construção não apropriada ao clima local tem reflexos diretos no consumo de aparelhos como ar-condicionado ou ventilador, caso a pessoa tenha dinheiro para isso. “Senão ela vai morar numa casa onde ela vai sofrer mais, porque vai ser muito quente no verão, porque vai ser muito frio no inverno, e, se ela não tem recurso para comprar esses equipamentos, ela simplesmente vai sofrer lá dentro passando calor ou passando frio”, comenta o professor. O mesmo vale para outras questões, como a iluminação. Ambientes com bom aproveitamento de luz natural podem garantir a economia com iluminação artificial. “Qualquer tipo de edificação, uma casa, um prédio comercial, um prédio público, uma escola, assim por diante, todas elas deveriam levar isso em consideração”, enfatiza o docente.
O tipo de parede, o modelo dos vidros, características das telhas, a cor da tinta – tudo isso se reflete no consumo de energia e no conforto dos usuários. Alguns exemplos de erros que, segundo Enedir, ainda se repetem bastante, apesar de serem simples de se resolver, são a aplicação de tons escuros nas fachadas e o uso de janelas sem proteção externa além do vidro, como venezianas e persianas de PVC.
“Se é só a janela comum, pode ter muito mais ganho de calor no verão, porque não tem a barreira externa fazendo a proteção. Nas casas mais antigas, usava-se bastante a veneziana. Na casa dos meus pais, em Criciúma, tem veneziana, e é muito comum nas casas de lá, em várias casas no Sul do Brasil, ter aquela veneziana de madeira de abrir. A veneziana tem uma função muito boa, que é proteger contra o sol nos horários em que a pessoa não quer o sol. A gente tem ainda muitos prédios por aqui, os prédios mais antigos, principalmente, que têm as janelas sem proteção nenhuma. Isso é muito inadequado.”
Algo semelhante acontece quando se usam tintas escuras. Assim como você sua mais se sai de camiseta preta num dia quente, casas ou prédios de cores escuras absorvem muito mais calor que edificações claras. “Isso vai se refletir depois internamente na edificação: os moradores vão sofrer mais ou menos. Ou se tiverem recursos para comprar ar-condicionado, eles vão acabar comprando ar-condicionado, porque o desempenho da edificação é ruim”, reforça Enedir.
Projeto também inclui estudos em áreas públicas. Nas fotos, uma avaliação de sistemas de iluminação no campus da UFSC, em Florianópolis. Teste comparou lâmpadas a vapor de sódio, a vapor metálico e de LED. Fonte: dissertação de mestrado de Fabrícia de Oliveira Grando
Aproveitamento de água da chuva
Os estudos sobre uso racional da água tratada, aproveitamento de água da chuva e reutilização da água residual de processos domésticos como lavagem de louça e banho compõem outra importante linha do projeto. O foco é empregar a água da chuva e a água residual nos usos que não demandam água potável, como descarga, rega de jardim, etc. – o que pode representar uma fatia considerável do consumo total.
Um levantamento realizado pelo grupo de Enedir em dez prédios públicos de Florianópolis indicou que chega a 77% o percentual de água utilizada que não precisaria ser potável. “Poderia ser água de chuva, por exemplo. A gente poderia também usar equipamentos economizadores de água para reduzir esse consumo. A porcentagem é muito alta”, afirma o pesquisador.
Vale destacar que nem sempre é garantida a viabilidade econômica de se instalar sistemas para captação de água da chuva. “Vai depender muito de cada caso. Para uma mesma casa, por exemplo, pode ser viável ou inviável dependendo do consumo de água das pessoas lá dentro, além, claro, de outros parâmetros. Mas, se forem duas casas idênticas, em um mesmo lugar, para uma pode ser viável e, para a outra, não, porque em uma o consumo é diferente do da outra”, explica Enedir. Também pode ser bastante complexo determinar o tamanho do reservatório de água necessário para cada edificação.
Foi justamente para ajudar nesse tipo de análise que o grupo desenvolveu o programa de computador Netuno. De uso gratuito, o software permite calcular a capacidade ideal de armazenamento e o potencial de economia de água, além de realizar análises econômicas, com estimativas precisas dos custos e economias envolvidos.
Pavimentos permeáveis
Um dos trabalhos mais recentes da equipe na área de economia de água envolve as pesquisas com pavimentos permeáveis para captação e armazenamento de água da chuva. Esses pavimentos são projetados em um sistema que conta com distintas camadas. A água que escoa sobre essa superfície, em vez de ir para a sarjeta, atravessa todos os níveis do pavimento até chegar a um reservatório específico, de onde é bombeada para outros reservatórios do edifício.
Esquema de pavimento permeável e aproveitamento de água pluvial. Fonte: dissertação de mestrado de Lucas Niehuns Antunes
“A gente já fez uma análise para o CTC [Centro Tecnológico da UFSC], por exemplo. Os estacionamentos ali ao redor seriam usados para esse fim, filtrando a água nas diferentes camadas. [A água] fica armazenada numa camada de baixo, dali, seria bombeada para um reservatório de água de chuva que ficaria na parte térrea da edificação, e, de lá, ela é bombeada lá para o alto, para outro reservatório de água de chuva, que é o que atende os aparelhos lá dentro da edificação, o vaso sanitário, o mictório e outros aparelhos em que a gente quiser fazer uso daquela água da chuva”, relata Enedir.
“Os pavimentos que a gente já usa normalmente, sendo um pavimento permeável, ele poderia [ser aplicado para esse fim]. Esses pavimentos que a gente tem, por exemplo, aqui na UFSC, com as lajotas e alguns outros tipos de pavimentos, poderiam [ser utilizados], basta que a gente estude as camadas que compõem esse pavimento para ver o tipo de areia que se coloca, o tipo de brita, e assim por diante, para fazer a filtragem. Então, não é algo que implicaria em ter custos extras absurdos, é aproveitar o que já se tem”, complementa.
Conforme afirmou o professor Vernon Phoenix, chefe do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da University of Strathclyde, na Escócia, na carta de recomendação dirigida aos avaliadores do Prêmio Pesquisa de Destaque, o trabalho tem potencial para aumentar drasticamente a quantidade de água que pode ser coletada, quando comparado à abordagem tradicional de se coletar a água da chuva dos telhados. A inovação, para ele, é particularmente valiosa onde a área do telhado é relativamente pequena em comparação à densidade populacional e é fundamental para combater a escassez de água causada pelas mudanças climáticas.
Comportamento das pessoas
Não importa quantos cálculos se façam, mesmo os mais refinados projetos podem fracassar completamente se não levarem em conta as pessoas que frequentarão o local. Por isso, o grupo de Enedir tem se dedicado, também, a estudar o comportamento do usuário e sua influência no consumo de energia, bem como busca sempre considerar essa perspectiva em suas análises.
“O usuário tem um comportamento geralmente previsível, mas nem sempre. Então, se a gente projeta a edificação prevendo que o usuário vai estar lá dentro num determinado período, e ele não está lá dentro naquele determinado período, isso dá um resultado completamente diferente do que pode ter sido previsto originalmente”, comenta o docente. “Em grande parte dos casos, os profissionais projetam a edificação mas esquecem que tem pessoas que vão morar lá dentro ou que vão trabalhar naquele lugar ou que vão estudar naquela sala. Mas não deveriam, pois o comportamento das pessoas tem de ser levado em consideração”, adiciona.
Em uma pesquisa recente, por exemplo, uma estudante de graduação orientada por Enedir avaliou o nível de satisfação de usuários de uma creche que recebeu a certificação Leed (Leadership in Energy and Environmental Design, ou Liderança em Energia e Design Ambiental, na tradução para o português), concedida por uma organização estadunidense. “Ela fez as análises nessa creche, comparando com outras, e o nível de insatisfação das pessoas é alto, porque não estão satisfeitas com a temperatura dos ambientes, porque não tem ar-condicionado em determinados ambientes, e aí a temperatura fica muito alta, porque tem ruído do trânsito ao redor, ou outros inconvenientes. O usuário é sempre um fator muito importante a ser considerado, e que nem sempre é”, frisa o pesquisador.
Novos estudos e trabalho em equipe
Como aponta Enedir, os assuntos abordados no projeto não se esgotam e envolvem discussões sempre atuais e necessárias. Além disso, com as mudanças climáticas, projetos voltados à economia de energia e de água se tornam fundamentais, uma vez que devemos enfrentar temperaturas cada vez mais extremas, e crises hídricas tendem a ser mais constantes.
“É claro que algumas coisas vão mudando à medida que a gente percebe que novos equipamentos e novas tecnologias vão sendo desenvolvidas, a gente vai percebendo que tem que de novo testar e fazer análises com relação àqueles equipamentos e àqueles parâmetros que vão sendo colocados no mercado. É uma área de pesquisa permanente. Envolve a edificação, envolve as pessoas, envolve o clima, e isso tudo é objeto permanente de investigação”, enfatiza o professor.
Enedir ressalta, ainda, que trabalhos como esse não são feitos de maneira individual, mas resultam de esforços de múltiplas pessoas. “Tenho dezenas de doutorandos, mestrandos, alunos de iniciação científica, de TCC, que me ajudam a desenvolver os projetos. Já tive vários e tenho ainda vários no momento. Sem eles, uma pessoa só não conseguiria fazer. A gente depende enormemente da contribuição de todos os alunos, e eu sou enormemente grato a todos os orientandos que tenho e que já tive, porque eles que me ajudam a fazer isso tudo.”
Camila Raposo/Jornalista da Agecom/UFSC
Fonte: Notícias UFSC